W, o outro reino do Absurdistão

Em tempos existiu uma revista que comprava religiosamente todos os meses e servia de companhia nas minhas viagens de ida e volta para a universidade. Não perdi nenhuma edição, estando cuidadosamente guardadas e arquivadas. A Grande Reportagem permitia-nos ver o mundo. Viajava-se com ela, sem sair do país, muitas vezes sentados no sofá, no banco do autocarro ou na atravessia do rio. Começou a decair, a revista, quando MST abandonou o projecto. Acabando por esfumaçar-se. Foi pena.
Uma das edições mais marcantes, se a memória não me falha, tinha o título No Reino do Absurdistão. Eram relatados, dentro do possível, alguns aspectos do quotidiano norte-coreano, naturalmente encenados e mecanizados. Destinados a mostrar ao estrangeiro que visitava a mui democrática e imaculada Coreia do Norte a efusiva alegria com que se vivia naquele país.
No artigo, se bem me lembro, eram descritas uma porrada de passagens que roçavam o hilariante, o absurdo, em que a realidade era tudo, menos a verdadeira, fosse ela boa ou má. Uma das cenas mais disparatadas acontecia num pressuposto museu, onde existia algures um mapa-mundi picado por umas luzinhas, do tipo daquelas que colocamos nas árvores de Natal, em cima de países amigos ou visitados pelo grande líder. Essas luzinhas acendiam para mostrar ao povo a imensidão de gente que estava do lado deles. O problema é que alguns desses países já tinha deixado de existir. O bloco de Leste tinha sido desmembrado ou desaparecido. Logo, a realidade que estava a ser mostrada ao simples norte-coreano já não existia. Era virtual ou escondida. Recordo que, nesse museu, estava exposto, entre outras peças de valor incalculável, um leitor de cd's. Uma prenda que o grande líder partilhava com o seu povo.


Em W, um reino que existe na terra do nunca, podemos fazer alguns paralelismos. Temos um líder que põe e dispõe, que acena à multidão, para que esta agradeça, sem saber muito bem porquê. É ajudado por um conjunto de presumíveis amigos que sussurram aos seus ouvidos e lhe contam o que se passa fora do palácio, ajudando-o, neste modo, na governança do reino. É, portanto, omnipresente e omnipotente.
No dia dos juízos, a turba costuma bater palmas efusivas ao que vai dizendo, mesmo que não entenda nenhuma das suas palavras ou que não esteja convencido ou acredite no que está a ouvir. Sem questionamentos, pois pode dar azo a movimentos persecutórios e de excomunhão, por parte da plateia. A reflexão e a dúvida são vistas com maus olhos e são encaradas como actos mal dizentes, de quem está contra tudo e contra todos, só por que sim. É que alguém, um dia, pode cair nas boas graças do líder e ser condecorado. E uma condecoração é uma condecoração, seja ela qual for. Ámen.

Comentários

Anónimo disse…
A Grande Reportagem abriu-me algumas portas do mundo. Religiosamente, na caixa do correio, todos os meses.